“Uma empresa privada comete o crime, mas quem resgata é o sistema público”

Uma das principais semelhanças entre os rompimentos ocorridos nos municípios mineiros de Mariana e Brumadinho é a falta de compromisso com a vida por parte das mineradoras. Essa é a opinião de Beatriz Cerqueira (PT), recém-eleita deputada estadual por Minas Gerais por um mandado coletivo.

Mas as principais análises sobre a mineração no estado ocorreram devido sua atuação fora da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. Professora da rede municipal de educação, foi diretora do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE/MG) e se tornou, em 2012, a primeira mulher a ocupar a presidência da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais (CUT/MG).

Em novembro de 2015, quando a barragem de Fundão se rompeu em Mariana (MG), havia se reelegido para o cargo e acompanhou empiricamente os efeitos na vida das populações atingidas e a tentativa de cerceamento da liberdade de manifestação exercido pelas mineradoras (Samarco, Vale e BHP Billiton). “Elas tentam impedir a auto-organização das pessoas”, opina.

Além disso, a deputada avalia que esses rompimentos demonstram uma relação desigual entre o privado e o público. “Quem cometeu o crime foi uma empresa privada, mas quem está resgatando as pessoas é o sistema público: de saúde, de assistência social, a defensoria pública e a defesa civil”, explica.

Na assembleia, entrou com o pedido para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) com poder de investigação para encontrar os culpados e evitar outros desastres como esses em Minas Gerais. “Minha esperança é a CPI, que tratada com a seriedade e transparência necessárias vai trazer um pouco dessas respostas”, avalia.

Confira a entrevista completa abaixo:

A senhora acompanhou todo o desenrolar do rompimento da barragem de Fundão como líder da Central Única dos Trabalhadores de Minas Gerais. Agora, recém-eleita deputada estadual, acompanhará o rompimento da barragem em Brumadinho (MG) como parlamentar. Quais são as semelhanças entre esses dois casos?

Nenhuma barragem rompe do nada. Ou seja, significa que ali ocorreram negligências e diminuição de investimentos. A primeira semelhança que eu pude perceber entre esses dois rompimentos é que as mineradoras não se importam com a vida das pessoas. É o que explica a Samarco não ter dado o direito de auto-salvamento aos seus trabalhadores que estavam ali, no pé da barragem, fazendo algum trabalho naquele momento. E também o que explica a Vale construir o refeitório embaixo da barragem em Brumadinho.

A segunda semelhança é a negligência com um mínimo de segurança e monitoramento de barragens. Essa forma negligenciosa de não se importar com a vida faz com que a gente tenha periodicamente crimes como o que nós estamos enfrentando. É inexplicável que não haja nenhum plano de emergência, de evacuação, de realocação das pessoas em diversas barragens. As mineradoras sempre buscam aumentar as taxas de lucro e, para isso, diminuem investimentos na segurança, no atendimento, nas condições que poderiam evitar rompimentos como esses que nós estamos vivendo.

Em Mariana houve um grande controle por parte das mineradoras sobre o processo de reparação. Isso também já pode ser verificado com o rompimento da barragem da Vale?

Essa é uma outra característica semelhante entre 2015 e 2019, ou seja, o controle pós-crime que as mineradoras exercem. Elas tentam impedir a auto-organização das pessoas, criminalizam os movimentos populares que vão atuar ou que já atuam na região afetada e tentam controlar o impacto na sociedade do crime que ela comete. As informações não são todas dadas de uma vez. Em 2015, a Samarco teve a cara de pau de dizer que havia um abalo sísmico e que portanto a primeira justificativa do rompimento seria essa. Elas controlam as informações que a população vai tendo acesso e também faz o controle pra determinar quem é atingido. No caso agora de Brumadinho eles controlavam, inclusive, a lista dos desaparecidos logo após o rompimento.

E como atuar especificamente aqui na Assembleia Legislativa de Minas Gerais?

Minha esperança é a CPI, que tratada com a seriedade e transparência necessárias vai trazer um pouco dessas respostas. Porque ela tem um papel de investigação e, portanto, pode chegar onde nós, movimentos populares, não chegaríamos. Com um nível de informação, investigação e questionamento a autoridades que são muito importantes. A CPI funcionará por 120 dias, prorrogáveis por mais 60. Então ela tem um tempo definido. Nós temos centenas de mortos, que nós precisamos dar respostas. Eu espero que sirva de lembrança permanente. Porque dessas centenas, várias famílias talvez não consigam nem enterrar seus mortos. Isso não dá pra esquecer, não dá pra tratar como algo normal.

Alguns movimentos populares tem apontado a privatização como um dos fatores principais que levaram a esses rompimentos. É possível pautar a reestatização da Vale atualmente?

Eu sou defensora dos serviços públicos, da reestatização. É um debate interessante, porque quem cometeu o crime foi uma empresa privada, mas quem está resgatando as pessoas é o sistema público: de saúde, de assistência social, a defensoria pública e a defesa civil. Quem está lá 15 horas por dia na lama buscando os corpos? São os bombeiros. Quem está fazendo todo esse processo é o serviço público. O que nós precisamos fazer agora é fortalecer o serviço público pra que ele exerça seu papel fiscalizador, pra que áreas estratégicas sejam controladas pelo Estado. O mundo faz guerras pelas riquezas, pelos recursos naturais. O mundo está em guerra pelo petróleo, pela água. Infelizmente, aqui no Brasil nós temos uma elite que não tem nenhum projeto nacional. Ela é subserviente a um projeto de exploração internacional. Nós temos um presidente que bate continência pra um assessor de um presidente de outro país. Essas discussões são fundamentais. Do nosso ponto, nós continuaremos fazendo essa defesa [da reestatização]. Mas antes disso é necessário que nós tenhamos uma punição. Como é que um presidente da Vale continua solto depois do que aconteceu? Como é que depois de uma reincidência os criminosos da Samarco estão todos atuando livremente?

Porque as mineradoras conseguem “driblar” o julgamento do Estado?

As mineradoras exercem um forte poder político-econômico. Aqui em Minas Gerais, nós estamos falando de um forte poder realizado em aliança com a Federação das Indústrias. Esse poder tem fortes ramificações em vários poderes do Estado: no executivo, legislativo e também no juridicário. É um poder econômico que coloca os municípios dependentes da mineração. Os municípios não conseguem ter diversificação das suas economias e parte significativa da classe trabalhadora desses municípios fica vinculada à mineradora. Classe trabalhadora precarizada: a maioria dos trabalhadores que morreu em Mariana era terceirizada, já que a Samarco chegou a ter 60% dos seus trabalhadores terceirizados. Seria muito importante que nós começássemos a discutir em Minas Gerais limites para essa atividade e também o que os movimentos populares chamam de zonas livres da mineração, porque existem outras formas de diversificação econômica dos municípios.

Em sua opinião, quais são os caminhos de atuação da sociedade civil pós-rompimento?

A primeira tarefa é a da auto-organização, ou seja, que as populações atingidas consigam se mobilizar sem a tutela da Vale. Também é necessário estar aqui na Assembleia pressionando diuturnamente pela pauta. Eu aprendi isso nas nossas lutas pela educação. Não basta vir aqui de vez em quando, tem que vir todo dia. Porque essa pressão popular altera a correlação de forças. Tem um projeto que quase ninguém fala, que é o da política estadual dos atingidos por barragens. A lama criminosa mata, deixa as suas consequências, mas se nós não tivermos uma legislação que garanta a essas pessoas um patamar mínimo de preservação de direitos vai se repetir o que aconteceu depois do rompimento da barragem de Fundão. Era a Samarco que dizia quem era atingido e o que esse atingido tinha direito. Era a Samarco que inviabilizava as mulheres, porque na visão dela as mulheres não têm renda própria. Os ribeirinhos continuam também numa situação muito crítica. E para tentar melhorar a sua imagem a Samarco criou uma Fundação, a Renova, que vai gerir os recursos que sequer ela vai chegar perto.

Fonte CUT/MG

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